6.8.07

ARTIGOS MAIS QUE INTERESSANTES

Os timbres vocais segundo Manuel P. R. Garcia

CANTO – BARROCO – TÉCNICA VOCAL – MANUEL GARCIA – TIMBRES VOCAIS - FISIOLOGIA
Alberto José Vieira Pacheco

Resumo:
Nesta comunicação, pretendemos descrever brevemente as características fisiológicas e estéticas dos timbres vocais definidos por Manuel P. R. Garcia em seu “Traité complet sur l’art du chant”, escrito em 1847. Escrevendo seu tratado em um período privilegiado da história do canto, Garcia denuncia a revolução vocal causada pela voix sombrèe. Veremos que sua descrição minuciosa dos timbres vocais nos revela diferenças consideráveis entre a sonoridade vocal do século XVIII e a do século XIX. Mostra ainda o que é preciso fazer para se produzir cada um dos timbres. Nesta medida, seu tratado se mostra uma valiosa fonte de informação, não somente para os intérpretes de música vocal romântica, mas também para aqueles envolvidos na execução historicamente informada da música setecentista.

Abstract:
In this paper we intend to briefly describe the physiological e esthetic characteristics of the vocal timbers, according to Manuel P. R. Garcia, in his “Traité complet sur l’art du chant”, written in 1847. Written during a privileged period of vocal history, Garcia reveals the vocal revolution caused by the voix sombrèe. We will note that his detailed descriptions of vocal timbers reveal significant differences between the vocal sonority of the XVIII and XIX centuries. He also indicates what is necessary in order to produce each one of the timbers. Hence, his treatise presents us with a valuable source of information, not only for the performers of Romantic vocal music, but also for those interested in the performance of music of the XVIII century.

Palavras chave:
CANTO – BARROCO – TÉCNICA VOCAL – MANUEL GARCIA – TIMBRES VOCAIS - FISIOLOGIA

Os tratadistas de canto do começo do século XVIII não entram em detalhes fisiológicos da produção vocal. Tosi , por exemplo, não diz praticamente nada que seja específico da fisiologia vocal propriamente dita. No final do século Mancini , por sua vez, fala sobre elementos básicos de fisiologia vocal, identificando os órgãos responsáveis pela fonação. São considerações um tanto primárias, mas que já revelam que os cantores da segunda metade do século XVIII aumentavam cada vez mais seu interesse pela fisiologia. Isso também pode ser observado nos comentários que Agrícola (1995) faz na sua tradução do tratado de Tosi, tentando explicar alguns fenômenos vocais citados no texto original . Apesar destes autores citarem o timbre da voz como um dos elementos estéticos do canto, não chegam a descrever de que maneira as manipulações do timbre vocal podem ser usadas como recurso expressivo.
O desenvolvimento científico do século XVIII cria a base para a futura pedagogia vocal, baseada em estudos fisiológicos da voz, que são muito importantes na escola de Garcia . Este, sim, fala extensivamente sobre o aparelho vocal propriamente dito, fazendo uma descrição abrangente de suas partes. O mais relevante é que Garcia também trata dos mecanismos vocais que seriam, segundo ele, responsáveis pelos vários tipos de sonoridade da voz humana. Esses mecanismos explicariam ou definiriam fenômenos como os registros, os timbres e a intensidade da voz, as diferenças entre os tipos vocais e as várias maneiras de articulação do som. Vejamos especificamente o que ele diz a respeito dos timbres.
Garcia (1985, 1ª parte, p. 8) define timbre como “as características próprias e infinitamente variáveis que podem tomar cada registro [vocal] e cada som, sem considerar a intensidade”. Segundo ele, a variedade dos timbres é produto dos diferentes sistemas de vibração da laringe e das modificações que a faringe imprime a esses sons anteriormente produzidos na laringe. Diz ainda que as condições que definem o timbre podem ser de dois tipos: fixas e pessoais de cada indivíduo, ou seja, dependentes da forma, do volume, da consistência, do estado de saúde do aparelho vocal de cada um; ou podem ser móveis, dependendo de vários fatores: da direção que o som toma dentro do tubo vocal durante a fonação (se ele passa pelo nariz ou pela boca), da conformação e da capacidade deste tubo, do grau de tensão de suas paredes, da ação dos músculos constritores e a do véu palatino, da separação do maxilar e dos dentes e da conformação dos lábios e da língua. A partir dessas considerações, trata apenas das condições móveis do indivíduo, e conclui que “As modificações são todas produzidas por dois meios opostos, que podem, numa última análise, ser reduzidos a dois princípios: o timbre claro e o timbre escuro" (GARCIA, 1985, 1ª parte, p.9).
Garcia descreve os efeitos desses timbres nos registros vocais.
• No registro de peito:

O timbre claro comunica ao registro de peito muito metal e brilho. [...] Este timbre, levado ao exagero, torna a voz gritada e esganiçada. [...]
O timbre escuro, ao contrário, dá a esse registro o mordente e a redondeza do som. É somente com a ajuda desse timbre que o cantor pode comunicar à sua voz todo o volume ao qual ela é susceptível (notem que eu falo de volume , e não da força e do metal). Este timbre, levado ao exagero, encobre os sons, sufoca-os, torna-os surdos e roucos (GARCIA, 1985, p. 9).

• No registro de falsete:

Neste registro, o efeito dos timbres, ainda que verdadeiro, é, todavia, menos marcante que no registro precedente (GARCIA, 1985, 1ª parte, p. 9).

• No registro de cabeça:

O timbre escuro o modifica de maneira mais marcante [...]
O timbre escuro tem sobre algumas vozes de cabeça um efeito dos mais marcantes; ele torna esse registro puro e límpido como os sons de uma harmônica (GARCIA, 1985, 1ª parte, p. 9).

Garcia também identifica os mecanismos fisiológicos que, segundo ele, seriam responsáveis por cada tipo de timbre:

Observemos que a modificação mais sutil no timbre traz necessariamente uma mudança na posição da laringe. Alguém pode se convencer disto experimentando passar sobre todos os sons alternadamente, desde o timbre mais aberto até o mais o mais escuro, e verá a laringe tomar posições progressivamente mais altas ou mais baixas, em razão da clareza ou da escuridão do timbre.
Observemos ainda que, nestes dois timbres que nos ocupam, os diferentes graus de intensidade adicionados aos sons não trazem nenhuma modificação sensível nos movimentos dos órgãos da faringe. O efeito contrário se manifesta desde que o cantor experimente alterar, pouco que seja, a nuance do timbre: no mesmo instante o véu palatino se abaixa para o timbre claro, ao passo que o timbre escuro produz a elevação do véu palatino e a ampliação da faringe. Esta ampliação se torna sensível, sobretudo quando o cantor dá a sua voz todo o volume que ela pode comportar, se bem que, por outro lado, os sons saiam desta forma muito fracos; o que merece ser constatado. Este ato de exagerar do volume só pode ter lugar nas condições do timbre escuro e com esforços violentos (GARCIA, 1985, 1ª parte, p. 10).

Garcia também descreve, de maneira didática, como se podem empregar os diversos movimentos da laringe e da faringe, de forma a se obterem os diversos timbres:

• No timbre claro:

Quando se desejar produzir o timbre claro, é preciso primeiramente que a laringe suba proporcionalmente à elevação dos sons e também que o véu palatino seja abaixado e, enfim, que o istmo da garganta se diminua. Assim, ainda que a abertura posterior das fossas nasais se apresente livre , a coluna sonora, devido à direção inclinada que ele recebe da laringe, encontra-se encaminhada em direção à parte óssea e anterior do palato, e a voz, sem tocar as fossas nasais, sai brilhante e pura. É necessário, neste momento, deixar a boca numa forma um pouco horizontal.
As vogais a, e, o, abertas à italiana, são modificações do timbre claro que traz esta conformação do órgão [vocal]. O timbre claro é facilitado pela inclinação da cabeça para traz, inclinação que deixa a coluna de ar se direcionar para a saída mais diretamente (GARCIA, 1985, 1ª parte, p. 13).

• No timbre escuro:

O timbre se torna escuro se o cantor fixa a laringe numa posição baixa e levanta horizontalmente o véu do palato. Neste caso, a faringe representa uma abóbada alongada e a coluna de ar que se eleva verticalmente bate contra a arcada palatina sem entrar na abertura basilar, que permanece fechada. O som torna-se mordente, pleno e coberto. É o que se chama de voz mista, escura. [...] A vogal u dá essa disposição ao órgão. Notem que para produzir os timbres escuros, abaixa-se a base da língua (GARCIA, 1985, 1ª parte, p. 13).

Podemos fazer algumas especulações, baseados na relação que Garcia estabelece entre as vogais e o timbre. Tanto Mancini quanto Tosi enfatizam que, nas divisões (ou passagens de agilidade vocal) devem ser usadas as vogais abertas a, e, o apenas. Logo, podemos dizer que o timbre claro seria o mais recomendado na execução das divisões. Além disso, como esses dois autores recomendam a vocalização principalmente nas mesmas vogais abertas e podemos dizer ainda que o timbre claro fosse o mais utilizado na escola dos castrati. Na verdade, tudo isso está em acordo com o fato de que a grande contribuição dos cantores do começo do romantismo para a técnica vocal foi justamente o desenvolvimento do timbre escuro descrito por Garcia. Antes da revolução técnica trazida pela voz escura o timbre vocal predominante parece ter sido o claro, que acabou perdendo espaço para o novo timbre, mais em concordância com orquestração do romantismo.
Ao tratar dos timbres vocais Garcia também faz considerações sobre o caráter brilhante ou surdo da voz. Segundo ele, além do timbre claro ou escuro que se pode dar à voz, também se pode atribuir a quase todos os sons dos dois registros vocais um caráter brilhante e metálico, ou, pelo contrário, torná-los completamente surdos:

No primeiro caso, experimenta-se um fechamento vigoroso da glote e o ar escapa com uma certa lentidão; no segundo caso, um grande relaxamento é sentido na mesma abertura e, apesar da debilidade do resultado que acompanha esse relaxamento, o ar escapa com uma rapidez quatro ou cinco vezes superior. Estes efeitos demonstram claramente que a produção dos sons brilhantes resulta de uma abertura da glote menor do que na emissão de notas surdas. Acrescentamos que, quando pinçamos fortemente a glote, podemos determinar um certo estreitamento, uma espécie de condensação dos tecidos da faringe, disposições as mais favoráveis ao vigor e ao brilho da voz. Ao contrário, o afastamento dos músculos aritenóideos determina naqueles tecidos uma flacidez que retira das ondas sonoras, absorvendo ou refletindo mal, a maior parte de seu brilho (GARCIA, 1985, 1ª parte, p. 13).

Ou seja, Garcia relaciona o brilho da voz com o grau de fechamento das pregas vocais. Na verdade, o relaxamento excessivo das pregas vocais pode provocar uma fenda por onde o ar pode escapar sem ser sonorizado, como Garcia descreve acima.
Prosseguindo, Garcia diz que o timbre claro e o escuro devem ser considerados como os dois principais, mas que, além deles, existem muitos outros que emprestam do timbre claro ou do escuro o que há de essencial no seu mecanismo. Na verdade, afirma que a voz pode tomar características as mais variadas: seja para produzir as vogais e suas modificações, seja para produzir os sons sob o efeito das paixões.

Conclusões:

No século XIX, os cantores exploravam novas sonoridades tentando se adequar às exigências da orquestração romântica, que foi se tornando mais densa. Aos poucos, estabeleceu-se uma nova sonoridade vocal, mais escura: os chamados sons sombrés , diferentes dos sons claires da escola de canto do século anterior. Nesse novo tipo de sonoridade baseia-se a técnica vocal que possibilitou ao tenor Gilbert Duprez cantar pela primeira vez um "Dó de peito".
Em meio a essas discussões, Garcia não poderia deixar de tratar extensivamente dos timbres vocais. Ao fazer isso, entretanto, não toma partido de um tipo específico de timbre, explicando e aconselhando o uso de ambos. Acaba, desta forma, deixando tecnicamente clara a diferença entre o som desenvolvido pela escola dos castrati – ou seja, o som de Tosi e Mancini – e aquele usado pelos cantores do romantismo e pela maioria dos cantores de ópera de nossos dias. Desta forma, a descrição feita por Garcia do timbre claro serve para entendermos melhor o que deveria ter sido o timbre claro usado por Tosi e Mancini: timbre que não chega a ser descrito de maneira tão detalhada fisiologicamente por nenhum dos dois. Esse fato só contribui para a importância do tratado de Garcia, mesmo para aqueles que pretendem pesquisar o canto do século XVIII.


Referências Bibliográficas:
AGRICOLA, J. F. Introduction to the art of singing by Johann Friedrich Agricola. Tradução de Julianne C. Baird (o original de 1757 já é uma tradução alemã do Opinioni de Cantori antichi e moderni de Tosi, 1723). New York: Cambridge University Press, 1995. Título original: Anleitung zur Singkust: aus dem italiänischen des Herrn Peter Franz Tosi.
GARCIA, M. A Complete treatise on the art of singing. Parte II. Edições de 1847 e 1872 reunidas e traduzidas por Donald V. Pasche. New York: Da Capo Press, 1972.
______________ Traité complet sur l’art du chant. Parte I, 1841; Parte II, 1847. Paris: Minkoff: 1985.
_______________ Trattato completo dell’arte del canto. Parte I. Milão, Ricordi & C. Editori, 1990.
MANCINI, G. Pratical reflections on the figurative art of singing. Tradução de Pietro Buzzi. Boston: Gorham Press, 1912 (original de 1777).
___________. Pensieri e riflessioni pratiche sopra il canto figurato. Viena: Ghelen, 1774.
PACHECO, A. Mudanças na prática vocal da escola italina de canto: uma análise comparativa dos tratados de canto de Píer Tosi, Giambattista Mancini e Manuel P. R. Garcia. Diss. Mestrado. Campinas, UNICAMP, 2004.
TOSI, P. F. Observations on the florid song; or sentiments on the ancient and modern singers. Tradução de Galliard. Londres: J. Wilcox, 1743 (original de 1723).
_________. Opinione de’ cantori antichi e moderni,, o sieno osservazione sopra il canto figurato. Bologna: 1723.

DadosBiográficos:

Alberto Pacheco

Tenor Ligeiro, natural de Minas Gerais. Em 1994, estréia como tenor solista na missa Crioula de Ariel Ramirez. Em 1997, ingressa no curso de Música da Unicamp, na modalidade voz. Na Unicamp, tem tido aula com os professores: Adriana Giarola Kayama, Niza de Castro Tank (canto), Helena Jank, Edmundo Hora (música barroca), Sara Lopes (voz falada), Eduardo Ostergreen (regência), Fúlvia Escobar (piano), Vânia Pajares, (ópera studio). Atualmente tem recebido orientação vocal com os professores Edílson Costa e Jocelyne Galo, em São Paulo.

Em 2000, canta numa montagem da Traviata de Verdi sob a regência de Carlos Fiorini, no papel de Gastone. Foi selecionado para o papel de D. Otavio, numa montagem da ópera Don Giovani de Mozart, a ser realizada pela orquestra da UNICAMP. Atualmente, é solista do grupo paulistano “Amanti dei Sospiri”, especializado em música barroca

Entre 1999 e 2001, é contemplado com uma bolsa de Iniciação Científica pela Fapesp, a fim de desenvolver trabalhos de pesquisa sobre interpretação de Música vocal barroca. Em meados de 2001, começa seu mestrado em música na UNICAMP, seguindo seus estudos sobre música vocal do século XVIII. No mestrado continua contando com o apoio da FAPESP. Finaliza seu mestrado no início de 2004.

Recentemente foi aprovado em primeiro lugar no processo de seleção para o Doutorado em Música na UNICAMP. Neste doutorado, iniciado em 2004, desenvolve pesquisa sobre a prática vocal brasileira do início do século XIX, contando mais uma vez com o apoio financeiro da FAPESP.
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Adriana Giarola Kayama
Professora de canto, dicção, fisiologia da voz e música de câmera nos cursos de Graduação e de pós-graduação em Música do Instituto de Artes da UNICAMP; cantora lírica; Doutora em Música (Voice Performance) pela University of Washington, EUA.















A técnica vocal na interpretação da música renascentista e barroca
Caros amigos, este é um assunto por demais polêmico. Cada professor de canto tem uma opinião diferente e, às vezes, quando as opiniões são iguais ou parecidas, a realização não é uniforme. Este trabalho apresentado por Glaucia Pina de Carvalho, Cláudia Felisberto e Guilherme Mannis deverá ser de uma utilidade absoluta para todos aqueles que se interessam pelo canto.

Interessante, note-se, a observação ao final do trabalho, afirmando que, contrariamente ao que se pensa, os antigos eram bastante minuciosos em seus tratados, ao menos sobre este assunto.

Leiam e se deliciem... Confirmem as minúcias a que chegavam os tratados da época... Levem para si aquilo que julgarem importante...
Universidade Estadual Paulista
Instituto de Artes
A técnica vocal na interpretação da música renascentista e barroca
Cláudia Felisberto
Gláucia Pina de Carvalho
Guilherme Daniel B. Mannis
SÃO PAULO, NOVEMBRO DE 2001

A Técnica Vocal na Interpretação da Música Renascentista e Barroca

Índice

Introdução..................................................................................................... 3
1. Técnica Vocal e Sonoridade na Música Renascentista....................... 4
2. A Técnica Vocal nos Séculos XVII e XVIII
2.1. Escritos sobre Técnica Vocal.......................................................... 8
a) A Arte do Canto nos Séculos XVII e XVIII............................. 8
b) Registros Vocais.......................................................................... 12
c) Agilidade Vocal........................................................................... 14
d) Afinação e Vibrato...................................................................... 17
2.2. Diferenciação entre Estilo Francês e Estilo Italiano..................... 19
a) Língua.......................................................................................... 19
b) Respiração................................................................................... 20
c) Vibrato......................................................................................... 22
d) As Consoantes.............................................................................. 23
e) Articulação de Garganta............................................................. 25
f) Considerações Gerais................................................................... 26
Conclusões................................................................................................. 26
Bibliografia
1. Consultada........................................................................................... 27
2. Levantada............................................................................................ 27
Site Consultado.......................................................................................... 27

Introdução
Com este trabalho, procuraremos abordar o conhecimento existente sobre a técnica vocal utilizada nos períodos da renascença e do barroco. Cada vez mais encontramos discussões em nosso curso e no meio musical sobre a adequação de uma interpretação ao conhecimento histórico que temos sobre o período relativo à obra que foi executada. Na Europa e Estados Unidos proliferam grupos que buscam uma interpretação histórica; passou-se a estudar a construção dos instrumentos e, no nosso caso, o uso das possibilidades vocais para se conseguir este ou aquele efeito.
Nosso interesse é nos inteirarmos um pouco mais sobre esta discussão e da produção resultante sobre o assunto, que aborda muitos aspectos relativos à música dos períodos citados. Neste trabalho procuraremos nos ater ao conhecimento específico sobre a técnica vocal empregada no renascimento e no barroco.
Os autores consultados colocam uma série de questionamentos sobre a relevância e mesmo sobre a possibilidade de se resgatar com extrema precisão uma prática vocal e a expressividade de uma música que já virou “história”, ou seja, que já não guarda uma relação clara com as estéticas em voga e a prática musical atual. Para G. Newton, a busca do conhecimento sobre a expressividade de peças de períodos anteriores passa por um estudo que vai além do conhecimento da partitura e que sempre vai ser resultado de uma interpretação e uma reflexão sobre os aspectos abordados. “(...) Realmente recriar o trabalho de um artista é apreender o conteúdo que o autor de fato expressou nesse trabalho, isto é, interpretá-lo corretamente como um veículo de comunicação. Tal apreensão consiste não apenas em uma compreensão geral do meio empregado, mas familiaridade com a linguagem e idioma do artista, e estes, por sua vez, são determinados por sua escola, período, cultura e personalidade. Também implica em um conhecimento do período do artista e do seu ambiente intelectual e espiritual”(p.2).
Portanto, deve-se ressaltar que a técnica vocal em si é apenas um dos quesitos a ser estudado e as conclusões ou suposições a que chegarmos sobre a mesma não serão determinantes da interpretação final, mas sim uma das importantes variantes.
Dividiremos nossa exposição como segue:
1. Características da sonoridade e técnica vocal no período renascentista.
2. Escritos comentados sobre técnica vocal do período barroco, baseados em coletânea realizada pela cantora Sally Sanford em sua tese de doutorado Seventheen and Eightheen Century Vocal Style and Technique.
3. Diferenças entre estilo de canto francês e italiano.
4. Conclusão

1. Técnica Vocal e Sonoridade na Música Renascentista
Partindo de um conhecimento sobre as técnicas utilizadas em nosso tempo e do nosso conhecimento atual sobre o aparelho fonador e respiratório, os pesquisadores utilizam-se de diversas fontes para uma reconstrução do que seria a técnica vocal utilizada em períodos anteriores ao nosso, como fontes iconográficas, descrições literárias, tratados gerais sobre música e estética musical, críticas musicais e etc...
G. Newton ressalta que, ao se debruçar sobre estes documentos, como não existe um registro sonoro das interpretações, o pesquisador terá um trabalho de interpretação, reflexão e reconstrução dessa sonoridade e a referência de partida para essa interpretação será um conhecimento fisiológico da produção sonora e da estética atual.
As descrições iconográficas e os comentários escritos por cronistas, enfim, as evidências encontradas nas fontes nos mostram que as peças eram executadas por pequenos grupos se comparados aos coros sinfônicos de períodos posteriores, ou por trios, quartetos e quintetos de solistas conforme a composição.
Os grupos eram formados na maioria dos casos exclusivamente por vozes masculinas, sendo as linhas agudas executadas por meninos. Acreditamos que, quando as linhas agudas eram executadas por mulher, estas buscavam também o timbre claro e a voz “branca” que os meninos produziam.
Além da formação pequena dos músicos, “(...) “cantus suavis” era a frase desse período.(...)” (G. Newton p. 11). Sendo assim, acredita-se que a faixa de dinâmica da interpretação era bem reduzida, ou seja, não existiam contrastes extremos entre o forte e o piano. G. Newton diz que a técnica utilizada para conseguir este canto suave não permitia que o cantor aumentasse o seu intervalo dinâmico, pois o mesmo começava a perder a qualidade vocal. Essa técnica consistia no uso de um fluxo de ar pouco intenso e no bom controle da passagem da voz de peito para o falsete, passagem esta que deveria ser contínua e homogênea.
Sabemos que o idioma instrumental se desenvolve nos primórdios do período barroco e que até aí os instrumentos estavam muito ligados ao idioma vocal. A escrita para instrumentos era praticamente a mesma da escrita para vozes e os instrumentos eram pensados para imitar a voz humana. Assim, o conhecimento que temos sobre as práticas instrumentais também se tornam fontes para a construção do conhecimento das práticas vocais. “(...) Eles (os instrumentos) floresciam e algum tempo depois caíam em desuso ou então eram alterados acompanhando uma nova estética. Principalmente no começo (da renascença), um dos objetivos declarados pelos construtores era o de imitar a voz humana.(...)” (G. Newton p. 9).
Sabe-se que a voz era considerada o instrumento perfeito e que os demais deviam imitá-la. G. Newton cita Fontegara de Sylvestro Ganassi: “Que fique claro que todos os instrumentos musicais comparados à voz humana são inferiores a ela. Por isso deveríamos nos esforçar por imitá-la (...) exatamente como um pintor talentoso consegue produzir todas as criações da natureza usando apenas cores, é possível imitar a expressão da voz humana com instrumentos de sopro e de corda (...). Já ouvi dizer que é possível com alguns instrumentistas perceber-se palavras em sua música.” (G. Newton p. 11). Hoje podemos fazer o caminho inverso e usarmos os instrumentos de época como modelo para o som a ser produzido pelo cantor. A sonoridade dos instrumentos de época nos leva ao som anasalado e “ardido” dos instrumentos de sopro com palheta e dos instrumentos de corda friccionada. Devemos também atentar para os tipos de articulações que são próprias desses instrumentos e imaginar como soam quando transferidos para voz cantada.
Quanto aos tipos de instrumentos mais relevantes é melhor citar o texto de G.Newton “(...) Munrow cita o Al Farab, livro de estudo do século X de Bagdá: Os instrumentos que mais se aproximam da voz humana são o rabab (rabeca) e os instrumentos de sopro(...)”. Ele também cita Tinctoris (1487), que escolhe a rabeca e o fiddle como ”aqueles que induzem piedade e conduzem meu coração mais ardentemente para a contemplação das alegrias celestes.(...)”.
Todas as evidências indicam que a rabeca tinha um som nasal e fino, bastante penetrante quando tocado em uma acústica reverberante. Era um instrumento de corda tocado com arco e ainda pode ser encontrado em orquestras javanesas. Mas a indicação mais clara da preferência pelo nasal e pelo timbre de palheta está no desenvolvimento neste período de doze tipos diferentes de instrumentos de palheta dupla, todos em vários tamanhos ou famílias. Alguns eram fortes, outros suaves e pelo menos metade não tinha nenhuma variação dinâmica porque os lábios não tocavam as palhetas. Todos eram mais ou menos nasais. Praetorius descreve a rackett como bastante suave, como se alguém estivesse soprando através de um pente (comb). (G. Newton p. 11).
Por essa descrição, vemos que, apesar da constatação de que o som era nasal, temos uma variedade na “escala” dessa nasalidade, quer dizer, se os instrumentos podiam ser mais ou menos anasalados então é provável que tenhamos a liberdade de escolher um timbre mais ou menos anasalado.
Outra fonte em que encontramos a referência ao anasalamento do som é a expressão facial e corporal de pinturas que representam cantores, dando uma idéia sobre o esforço utilizado, sobre o tipo de som que aquele cantor estaria produzindo. Exemplo de fontes iconográficas utilizadas: altar da Catedral de Ghent pintado por Van Eyk (1420), “Virgem e Criança no Trono” de Cosima Tura e a “Natividade” de Piero della Francesca. “(...) É difícil passar despercebido o contraste entre a expressão serena dos instrumentistas e os rostos retesados dos cantores. Qualquer pessoa poderia imaginar o som produzido por tais cantores; os rostos se retorcem como se sofressem dor; os músculos ao redor do nariz estão esticados; os músculos da garganta estão tensos; e a boca mal está aberta. O som só pode ser estridente e anasalado, virtualmente sem vibrato.” (G. Newton p. 10).
Trechos de obras literárias também citam textualmente o gosto pelo som anasalado; ex. “(...) No prólogo de “Canterbury Tales” de Geoffry Chaucer (1328-1400), um dos viajantes é uma madre superiora. Dentre seus muitos e encantadores talentos temos: tão bem ela cantou o serviço. Docemente anasalado(...)”. (G.Newton p. 9).
Volume, tipo de vozes e número das mesmas utilizadas na formação dos grupos vocais, cantus suavis e o timbre são as principais características que encontramos, na bibliografia que pudemos consultar, sobre a maneira de se cantar na renascença.

2. A Técnica Vocal nos Séculos XVII e XVIII
2.1 Escritos sobre Técnica Vocal
Os escritos que apresentaremos neste tópico são retirados da tese de Sanford, que recolheu escritos sobre técnica vocal em diversos tratados dos séculos XVII, XVIII e início do XIX, tratados que são tanto específicos da arte do canto bem como de toda a prática musical. Deve-se notar que os tratados chegam a ser muito precisos em suas observações, diferentemente da idéia de que tratados antigos são vagos e muitas vezes trazem informações de caráter mais alegórico do que prático.
a) A Arte do Canto nos Séculos XVII e XVIII
Neste tópico abordaremos informações mais gerais sobre a arte do canto na visão de vários tratadistas europeus.
Jean Baptiste Bérard, em L’Art du Chant (Paris, 1755), sobre a habilidade musical que o cantor deve possuir: ”Pode-se estar errado em definir um bom cantor como sendo meramente um bom organizador de sua língua, garganta, boca e ouvidos. Ele tem de estar apto a pensar e ouvir”.

Ainda Bérard, sobre os deveres de um cantor:
• Exatidão de afinação;
• capacidade de ligação entre dois sons (legato);
• fazer uso de sons expressivos;
• executar bem os ornamentos;
• inclinar sua ação ao canto (algo ligado à interpretação cênica).
Bérard, em alguns de seus escritos, ainda compara as nuances de um quadro e um pintor com as nuances do canto, e defende uma interpretação "afetada" por assim dizer.
Outro importante tratadista francês foi Marin Mersenne. Em seu Harmonie Universelle (Paris, 1636) Mersenne fala sobre as qualidades que uma voz deve possuir:
• afinação;
• igualdade (provavelmente igualdade no registro);
• flexibilidade.
Qualidades desejadas:
• doçura;
• harmonia (a voz desejável é comparada a uma face e um corpo gordos e vistosos, enquanto a voz minguada é comparada a um corpo e face esquálidos).

Bégnigne de Bacilly, em Remarques curieuses sur l’art de bien chanter (Paris, 1689), sugere as seguintes características que o cantor deve possuir:
• entoação perfeita (altura);
• sustentação apropriada da voz;
• carregamento e suporte (apoio);
• execução apropriada de cadências e trêmulos;
• pulsação de garganta apropriada quando necessário (vibrato);
• interpretação apropriada de acentos;
• performance apropriada de passagens e diminuições (dinâmica);
• pronúncia e declamação afetiva dos textos ( ...pronunciando bem as palavras de forma apaixonada e, sobretudo, observando a maior ou menor duração das sílabas).
De forma geral, as qualidades do bom cantor segundo os franceses são: afinação, igualdade, clareza, flexibilidade, doçura (musicalidade), sonoridade ("harmonia"), corpo e grande tessitura.
Pierfrancesco Tosi, famoso castrato italiano do século XVIII, escreveu um tratado muito difundido e consultado por toda a Europa: Opinioni de Cantori Antiche e Moderni (Bologna, 1723). O tratado foi traduzido para o alemão e inglês pelo famoso tratadista Agricola, influenciando toda uma geração de cantores europeus. Tosi, que será muito citado nos tópicos seguintes, deixa inicialmente claro o conceito de que o cantor deve ter sobretudo grande conhecimento musical além de uma bela voz.
Johann Herbst, em seu Musica Pratica (Nurembergue, 1642), sobre as características da voz:
• amabilidade;
• vibrante e trêmula com moderação;
• garganta suave e redonda para diminuições;
• sustentação de uma respiração longa e contínua (apoio);
• suficiente para executar uma das vozes do coro sem entrar no falsete (que a seu ver é uma "meia-voz forçada").
Johann Adam Hiller, em seu Anweisung zum musikalisch-richtigen Gesang (Leipzig, 1774) pede ao cantor as seguintes qualidades:
• boa voz;
• afinação apropriada;
• senso de ritmo;
• ênfase apropriada e toda a elegância possível;
• variação do peso da voz
Christoph Bernhard em Vor der Singkunst oder Manier (1650) diz sempre o que não se deve fazer: ”Em suma, o cantor não deve cantar pelo nariz. Não pode sussurrar, pois não será compreendido. Não deve empurrar sons com a língua nem sibilar, de forma que vão entender metade do que fala. Não deve fechar os dentes, não deve abrir muito a boca, não deve colocar a língua para fora dos lábios, não deve levantar os lábios, não deve distorcer a boca, não deve desfigurar a face e o nariz como um cercopiteco , não deve franzir a testa, não deve virar muito a cabeça e os olhos nem ficar sempre com o mesmo olhar, não deve tremer os lábios...”

Deve-se ressaltar que muitas regras destas tratadistas são seguidas até hoje, as maneiras que possuem alguma diferença são as seguintes:
• maior ênfase em flexibilidade e afinação do que volume;
• o cantor deveria ser um bom improvisador de acordo com o estilo que executava;
• início do estudo do trilo logo no início do aprendizado.

b) Registros Vocais
Apesar de haver na época um número grande de cantores cujas vozes eram louvadas por sua beleza e extensão, os tratadistas consideram uma extensão de duas oitavas suficiente para a maioria dos cantores.
Havia uma clara noção de voz de peito e voz de cabeça, como evidencia James Nares, em seu A Treatise on Singing (Londres, 1780): ”Gostaria de observar que, depois do aluno ter ganho uma boa entoação e algum tratamento de sua voz, o mestre deve atentar para a tessitura de sua voz, mostrando-lhe onde sua “Voce di petto” termina e onde cultivar o falsete, ou “Voce di testa”, e instruí-lo como as vozes devem ser combinadas, tão imperceptivelmente quanto possível. Sem esta combinação a agradável variedade vocal será perdida.”
Na maioria dos tratadistas havia uma maior preocupação com qualidade vocal do que com extensão. Muitos ressaltam que o cantor não deve forçar sua voz, a fim de tentar alargar sua tessitura. Remy Carré em Le maistre des novices dans l’art de chanter (Paris, 1744): ”A primeira regra é a de não forçar a voz de maneira a cantar mais alto ou grave do que sua disposição natural permite.”
Giovanni Mancini, em Riflessioni partiche sul canto figurato (Milão, 1777), considera mais importante a igualdade sobre todo o registro do que simplesmente a extensão: ”Atualmente, professores desejam alargar a tessitura do aluno, e, por forçar a natureza, retiram da garganta humana um número bem maior de sons (...) Na minha opinião, no entanto, a qualidade vocal sempre dependerá da qualidade de igualdade sobre todo o registro e perfeita entoação .”
Havia diversos tipos de classificação vocal, dos mais básicos aos mais específicos. Entre os básicos havia quase um consenso, evidenciado em Hiller e Mengozi:
Discant Altus Tenor Bass
Alguns tratadistas evidenciavam uma certa preferência por vozes agudas a graves, tal como Bacilly: ”... um grande número de emoções ou paixões vão estar em vantagem nas vozes agudas ao invés das graves. A voz de baixo é adequada tão somente à emoção da raiva, que aparece raramente nas árias francesas.”
Havia mais castrati na Itália do que na França, país onde não eram muito admirados. Já na Itália estes dominavam a cena vocal. Há uma grande dúvida atualmente sobre como se dava o esquema voz de peito/voz de cabeça entre os castrati. Sobre voz de peito e voz de cabeça houve uma grande discussão por tratadistas de toda a Europa. Muita confusão se fazia e nota-se que não havia unanimidade no assunto. No entanto, a voz de peito era preferida à voz de cabeça por muitos tratadistas, mesmo os mais antigos tais como Zacconi, cujo tratado Prattica di musica utile e necessaria de 1596 (Veneza) evidencia: ”Entre a voz de peito e de cabeça, vozes de peito são melhores como regra geral. ”
Domenico Cerone, Il Melepeo (Nápoles, 1613): ”A voz de peito é a mais própria e natural, não tão porque é formada pelo peito, mas sim porque é afinada.”
Ciulio Caccini, Le Nuove Musiche (Florença, 1601): ”Da voz de falsete a nobreza do bom canto nunca poderá vir.”
Caccini prefere a adequação da tonalidade à voz da pessoa ao falsete. Como hoje, os tratadistas salientavam que o uso do falsete estendia a tessitura e facilitava a execução de passagens rápidas e trilos, porém não possuía potência vocal.
Mengozzi, em seu método de canto de 1803 mostra-nos uma certa evolução do conceito voz de peito/cabeça. Ele fala sobre certas misturas entre os dois registros, inclusive propondo certos exercícios para que o cantor tenha consciência de qual registro usar dependendo de sua necessidade. Nota-se claramente um conceito de "degrau" vocal, pois as escolhas que Mengozzi propõe entre voz de peito, voz de cabeça e voz intermediária para a execução de uma mesma nota evidencia isso. Sobre o registro de soprano, Mengozzi mostra o seguinte :

c) Agilidade Vocal e Articulação da Garganta
A agilidade vocal era considerada um dom, que poderia ser refinado através do treinamento mas não adquirido.
Bácilly, 1689: ”Eu disse (...) que a voz é um dom da natureza, e isso é muito comum; mas isso não tem nada a ver com a disposição , que a natureza nega à maioria das vozes e que significa uma certa facilidade na performance de tudo concernente à técnica vocal, pois está localizada na garganta. Mas esta disposição da garganta para a execução de todo tipo de ornamentos é a mais rara qualidade possível entre aqueles que cantam.”

Sobre estilos de execução, Tosi argumenta que o estilo articulado ou marcado era mais utilizado que o ligado, "que certamente imita uma escalada".
Sobre articulação marcada e divisões, Mancini (1777) escreve: ”Muitos pensam, ao cantar um grupo de três ou quatro notas, que apenas a primeira e a última necessitam soar, escorregando simplesmente entre as outras notas. Isso não pode ser chamado de agilidade, mas está mais para uma cantilena, e é certamente de mau gosto e contrário às regras da arte. Do outro lado, há aqueles que exageram e martelam cada nota com desigualdade de voz, igualando as passagens sem distinção, em conseqüência privando-as daquela graça do ataque e posterior retirada da voz. Conseqüentemente, o canto assemelhar-se-á ao canto desgostoso do galináceo.”

Ainda sobre grupos e ornamentação, Falck (1688): ”É um erro se o cantor não dirigir atenção diligente à aplicação do texto base, se ele separar as notas de uma coloratura ou uma passagem com uma respiração ou caminhar de uma nota a outra com um “h” igual ao de uma risada, tal como pronunciar Sa ha ha ha ha ha ha ha halve.”

Tosi, sobre o mesmo assunto: ”Há muitos defeitos nas Passaggi, que temos de conhecer, a fim de evitá-los. (...) Há ainda professores muito ridículos, que marcam todo um compasso e, forçando a voz, pensando em fazer uma passagem sobre "a" aparece como se fizessem ha, ha, ha, ou gha, gha, gha; e o mesmo sobre outras vogais.”

Fazer divisões com língua também é algo condenado. Bacilly (1689): ”Pode-se considerar uma regra máxima da música vocal que todas as passagens executadas com língua são completamente erradas.”

A execução das passagens era extremamente ligada à garganta. Johann Mattheson, Der volkommene Capellmeister, (1739), sobre fisiologia: ”No que diz respeito ao aparato da voz humana, o tubo de ar consiste de variadas cartilagens, que se ligam umas às outras como anéis e são amarradas por bandas membranosas e flexíveis. As cartilagens são de forma empilháveis, mais moles que osso e mais rijas que tendões. Duas delas, que são menores que as outras e estão situadas perto dos primeiros anéis do tubo de ar, com seu fechamento constituem a borda ou o topo deste tubo e possuem o nome “glottis”, ou seja, “lingüinha”. Esta fenda produz som por aberturas e movimentos. Pode-se comparar a forma da chamada “lingüinha” com a boca de uma pequena lata d’água, em uma escala menor: por conseqüência esta cartilagem unida é chamada “cartilaginem guttalem”, de “gluttus”. Sobre tudo isso ainda há uma maior lingüinha, que é mais macia. A forma da “epiglottis” é muito similar a uma cesta triangular, arcada e pequena, curva na direção da boca porém côncava no outro lado. É indubitável que esta epiglote contribui à delicada formação e delicadeza do som, especialmente em trilos e mordentes... ”

No entanto, o apoio nas passagens foi lembrado por Bayly (1771): ”A execução apropriada de “Passaggi” requer não só uma fácil e bem treinada garganta bem como um forte e firme peito.”

O ponto de partida para o desenvolvimento da agilidade vocal na articulação da garganta era o estudo do trilo. Mancini (1777): ”No entanto o trilo, que é um ornamento de nossa arte do canto, era ensinado pelos velhos mestres no começo de sua instrução vocal. Mesmo que o aluno não tivesse disposição natural para fazer isto, estes professores incentivavam-no a treinar em seus primeiros estudos. Não porque esperavam que executassem e dominassem este artifício antes que qualquer outro ornamento, mas somente a iniciá-los na prática da ação.”

O uso da articulação de garganta não significava que os músculos da garganta devessem estar contraídos, muito pelo contrário. A fim de que as pulsações da região da glote ocorressem natural e rapidamente, a laringe e a língua precisariam estar relaxadas. A articulação adequada da laringe depende de um bom mecanismo vocal coordenado de forma geral. Rameau, em seu Code de musique pratique (Paris, 1760) aponta que a glote perde sua flexibilidade, se a respiração ou o fluxo de ar são realizados com muita força.

d) Afinação e Vibrato
Nos séculos XVII e XVIII a perfeita afinação era um dos elementos primordiais do canto.
Caccini (1601): ”Na profissão do cantor (acima de tudo), detalhes particulares não são relevantes, o mais importante fundamento é a perfeita entoação em todas as notas, não só para evitar a queda ou a elevação na afinação mas sim por cantar de uma boa maneira.”
Mattheson (1739): ”... quando, sem se notar ou sem saber se cai um pouquinho fora da nota ou se afunda na afinação dos tons, isto significa uma desafinação.”

Mancini (1777): ”Não há nada mais sofrível e mais indesculpável que um cantor de entoação ruim. Uma voz de garganta ou nasal é preferível do que o canto desafinado.”

A falta de afinação era considerada incurável por muitos teóricos, que aconselhavam os desafinados aspirantes ao canto a seguirem outro ofício.
Já sobre afinação e temperamentos, temos importantes escritos que podem ser levados em conta numa execução moderna. Segundo Mancini, o cantor era capaz de fazer finas distinções de altura , em oposição aos instrumentos de temperamento fixo, tais como órgão e cravo. Esta limitação dos instrumentos apresentava sérias dificuldades ao cantor, que quando era acompanhado por tais instrumentos deveria se adaptar para mesclar a afinação pura do canto ao temperamento fixo dos instrumentos .
Mancini (1777): ”Desde que o cantor é naturalmente inclinado a intervalos precisos e exatos , este sempre se sente em dúvida em saber qual dos instrumentos de diferentes temperamentos deve seguir. Para ter certeza, o cantor deverá seguir a afinação do órgão ou do cravo, pois apesar de serem temperados e imperfeitos por si próprios e esta imperfeição ser decorrente de sua construção e de sua dificuldade em afinar com os outros instrumentos, estes instrumentos são a base e o modelo para todos os outros instrumentos bem como para a voz. Dependendo do órgão ou do cravo o cantor irá então utilizar a afinação deste instrumento, que sempre serviu como afinação básica...”

Sobre métodos de aprendizagem de solfejo e afinação, há diversos pontos de vista. Recomenda-se o uso de instrumentos no aprendizado com o intuito de resolver os problemas de afinação do cantor. Mancini, por exemplo, defende a utilização de instrumentos soando em mais alto volume a fim de que o aluno consiga ouvir e resolver todos seus problemas de afinação: ”Até que o aluno tenha completa certeza de sua afinação, não se deve permitir o canto sozinho.”

Hiller também observa que deve haver um cuidado especial na afinação do instrumento quando este acompanhar um cantor. Um cravo mal afinado, por exemplo, destruiria o fino trabalho de afinação desenvolvido pelo cantor. Havia, no entanto, certos tratadistas que preferiam apenas a voz do professor como guia para a afinação, tais como Bácilly, Bérard e Ferrari.
Devido à grande importância dirigida a afinação pelos tratadistas da época, presume-se que o vibrato era restrito a um ornamento vocal e utilizado com parcimônia, sobretudo em notas longas. Agricola (Berlim, 1757): ”O “vibrato” em duas notas repetidas, que é realizado num instrumento de arco através da ondulação superior e inferior do dedo, mantendo-se a nota dada e alterando-se um pouco esta nota ascendente e descendentemente de maneira a flutuar um pouco na nota, é também um ornamento, que no canto pode ser um bom efeito especialmente na sustentação de notas longas, sobretudo quando é empregado no final da nota.”

O símbolo mais comum para o vibrato era uma espécie de "cobrinha" colocada em cima da nota, parecido ao símbolo utilizado hoje para sustentação de trilo. É necessário ressaltar que a velocidade do vibrato também variava. Hottetere (Paris, 1715): ”Deve-se observar que é necessário utilizar-se de “vibrato” em quase todas as notas longas e, como trilos e mordentes, deve ser executado devagar ou rapidamente dependendo do movimento e caráter da peça.”

2.2 Diferenciação entre Estilo Francês e Estilo Italiano no séc. XVII
Embora a música vocal solo italiana e francesa no século XVII possa ter compartilhado um alvo estético comum - para mover as paixões - cantores franceses e italianos apontam meios técnicos e estilísticos completamente diferentes. Este texto examina algumas das áreas principais da técnica vocal que ajudam a definir as diferenças entre o canto francês e italiano neste período.

a) Língua
Além das diferenças óbvias, importantes no estilo da composição e da ornamentação e da falta de interesse do francês pela voz do castrato, as diferenças mais significativas entre canto francês e italiano do século XVII estão no fato de que o italiano é uma língua qualitativa enquanto o francês é quantitativo A música vocal italiana é trazida à vida principalmente com a expressividade dada às vogais, ao passo que na música francesa a expressão emocional descansa principalmente na “nuance” altamente variada das consoantes.

b) Respiração
Aqui nós tocamos numa área cinzenta relacionada à reconstrução das técnicas vocais históricas, porque os tratados de canto do século XVII nos dizem muito pouco sobre a natureza da liberação do ar durante a fonação, com exceção do fato de que isso não era feito com grande esforço. Jean-Philippe Rameau no século XVIII fornece algo razoável sobre a evolução de uma técnica da respiração aproximada à fala: ”... toda a nossa atenção, todo o nosso desejo, deve simplesmente se concentrar no mesmo tipo de respiração de quando nós falamos: no desejo de nos expressarmos, a voz é ouvida sem custar o menor esforço. Deve ser o mesmo para o canto: preocupar-se somente com o desejo de se fazer saber, todo o relaxamento deve ser semelhante à fala, não sendo necessário pensar muito na respiração.”

A respiração italiana pode ser descrita como a que variou a pressão de ar, a velocidade do ar e o volume de ar de acordo com a declamação dramático e emocional do texto, e a alguma extensão de acordo com o tamanho do espaço em que se estava cantando. Mesmo que a pressão de ar flutuasse, o sistema italiano da respiração durante o século XVII usava menos pressão (menos volume) do que aquela que nós associamos com o canto operístico moderno. A corrente de ar variável dá uma graduação dinâmica, um chiaroscuro, às vogais que corresponda à acentuação e declamação do texto. O próprio texto fornece um plano dinâmico e forma para a linha vocal que deve ser observada pelo cantor e ser refletida no acompanhamento.
Com a nova ênfase italiana do século XVII em recitativos e na primazia das palavras, não seria surpresa encontramos um estilo do ornamentação que caracterize ornamentos dinâmicos, como o messa di que voce e esclamazione. O texto é a chave do canto expressivo para Caccini, que diz que expressar a paixão do texto só é possível com o controle da respiração: "um homem deve ter um comando da respiração para dar o grande espírito ao crescendo e ao decrescendo da voz, para “esclamazione” e outras paixões" .
A respiração francesa pode ser descrita como um sistema estacionário, de constante pressão de ar, velocidade do ar, volume do ar - semelhante a algumas escolas francesas modernas na arte do canto - com uma diferença na quantidade de pressão do ar, que, semelhante ao italiano, está abaixo da escola moderna. No sistema de estado estacionário francês do século XVII, como o controle dinâmico das vogais não era um interesse preliminar; os contornos dinâmicos da linha vocal ocorreram dentro de uma escala menor. Em vez das vogais expressivas, o foco estava na inflexão expressiva das consoantes que eram “cantadas" nesta coluna de ar constante. As consoantes eram cantadas mais longas ou mais curtas e o vigor dado a elas era mais duro ou mais macio, de acordo com a paixão expressada. A técnica das consoantes francesa será discutida mais detalhadamente abaixo.

c) Vibrato
A razão principal do “vibrato” ser mais perceptível numa nota contínua no canto moderno está no fato de a pressão de ar usada ser maior. Quando há uma mudança na pressão de ar ou no tamanho da corrente do ar, a laringe responde diferente automaticamente. Usar uma pressão mais baixa (comparada ao canto operístico moderno) evita a necessidade de controlar o “vibrato” com a supressão mecânica na extensão vocal. O canto do século XVII - francês ou o italiano - não é conseguido fazendo exame de uma produção moderna e “endireitando" o som. Se você tentar suprimir o “vibrato” sem mudar a pressão de ar, você terá que usar algum tipo de restrição na extensão vocal. Tal restrição pode conduzir a tensão desnecessária e à fadiga. Usar uma instalação laríngea que seja irrestrita, com uma pressão da respiração que permita que o “vibrato” seja usado na descrição do cantor, é um denominador comum entre canto italiano e francês século XVII; o que difere é a corrente de ar em estado constante. O “vibrato” era adicionado pelo cantor quando desejado e não era natural para a voz..
Há duas maneiras diferentes de se produzir o “vibrato”: através da pressão da respiração e através da garganta. Ambos os tipos de mecanismo do “vibrato” foram usados durante o século século XVII. Os mecanismos diferentes produzem uma diferença no som para estes dois tipos de “vibrato”. Os franceses muito provavelmente usariam um “vibrato” de garganta, para não perturbar sua coluna de ar constante. Já os italianos usaram um “vibrato” de respiração, já que usavam uma corrente variável de ar, deixando o “vibrato” de garganta para efeitos mais especiais. Nenhuma fonte do século XVII dirige-se a este assunto, embora Johann Adam Hiller no final do século XVIII considere o “vibrato” de garganta como o mais difícil dos dois tipos. Isto sugere que a escola de canto Italo-Germânica do século XVIII tenha usado o de garganta menos freqüentemente do que o de respiração.

d) As consoantes
Assim como cada paixão era manifestada em um jogo de características particulares que significavam para o artista um trabalho tal como Caracteres des passions (1696), de Le Brun, cada paixão teve sua característica própria do discurso. Bacilly dá-nos na forma esqueletal uma discussão da consoante dupla ou prolongada. Sua discussão foi expandida mais tarde no século XVIII principalmente por Bèrard, Lecuyer e Raparlier. Bacilly confinou seus exemplos às letras “m”, “f”, “s”, “j” e “v”. Bérard esboçou mais tarde cinco tipos de articulação de consoantes: dura, macia, natural, escura e desobstruída, dependendo do caráter das palavras do canto. As regras de Lecuyer para consoantes podem ser sumariadas como segue.

• Dobre as consoantes iniciais de cada pergunta, por exemplo: Pourquoi? tu do veux?
• Dobre as consoantes iniciais de cada palavra de injúria, por exemplo: Perfide, cruel.
• Prepare a consoante inicial de cada substantivo ou adjetivo que dão uma qualidade agradável ou uma qualidade da distinção, por exemplo: beauté, grandeur, fraicheur, tendre, jeune, charmant.
• Prepare ou dobre cada negação e preposição, por exemplo: non, rien, si.
• Sempre que houver diversos monossílabos na sucessão, o último deverá ser dobrado, por exemplo: non, nnon .
• Não dobre duas consoantes sucessivas.
• Em uma palavra composta de diversas sílabas com consoantes duplas, dobre o primeiro grupo, por exemplo: Terrasser. Pronuncia-se mal ao dizer terasser; ao contrário deve-se dizer terraçer, como se houvesse apenas um “ç” lugar do “ss”.
Estes escritores descrevem uma técnica de preparar ou de prolongar consoantes e de variar sua articulação para fazer a música mais expressiva. Bérard chamou-a consoante dupla, e indicou-a escrevendo na segunda consoante, como o lugar onde deve ser aplicado. Esta técnica de consonantes não é discutida nas fontes italianas ou alemãs.
Algumas consoantes como “m”, “n”, “b”, “l”, “v”, “d”, e “z” são as mais fáceis de se prolongar, porque podem ser facilmente atacadas. De um ponto de vista prático, prolongar consoantes deixa a execução sincronizada com o tempo da músicas, carregando uma consoante sobre o tempo, por exemplo, é melhor do que ocorrer antes do tempo, como é o padrão do canto mais clássico, seguindo a tradição italiana.
Bérard dá o seguinte guia para a consoante dupla forte para o início da ária La Haine "Plus on connoit l’amour” de Armide, de Lully (ato III, cena IV): Plus on cconnoit ll’amour, & pllus on lle ddetestte: Detrruisons sson ppouvoir ffuneste. rRomppons ses nnoeuds, decchirons sson bbandeau, Brrulons sses trraits, etteignons son fflambeau. (nota 20)

e) Articulação da Garganta
O canto francês e italiano no século XVII diferem significativamente do canto moderno com respeito ao uso da articulação da garganta, uma técnica para cantar passagens e ornamentos rápidos. A articulação da garganta existe desde a Idade Média e alcançou o seu auge por volta de 1580 com os cantores de garganta, tais como as três damas de Ferrara, que eram excelentes nesta técnica de gorgia (notas rápidas no palato mole). Bacilly chamou esta técnica, ou a instalação laríngea para usar esta técnica, a disposition de la gorge. Os italianos chamaram-na dispositione. A articulação da garganta é uma técnica essencial para o cantor de música do século XVII, particularmente porque torna a música mais fácil de se cantar (ou seja, só para quem tem disposição).

f) Considerações gerais
Usar uma interpretação histórica para cantar a música francesa e italiana do século XVII requer uma fluência não somente em estilos musicais diferentes, mas em técnicas vocais diferentes. Envolve reações diferentes à notação musical também. As diferenças entre canto francês e italiano que nós discutimos são baseadas primeiramente nas diferenças da língua. As implicações destas diferenças não são importantes somente para os cantores interessados no repertório do século XVII, mas também para os instrumentistas interessados em trabalhar com uma interpretação histórica, já que o canto era o modelo para a música instrumental neste período.

Conclusões
Um estudo deste porte pode fornecer maiores subsídios ao cantor e ao regente de modo a este montar sua "verdade interpretativa". Na música, não deve haver o "certo" nem o "errado", mas sim a "minha expressão", a coerência da interpretação.
Muito do que os antigos falam é utilizado atualmente em larga escala, bem como conceitos que na época estavam obscuros e em desenvolvimento são completamente claros hoje. Não vemos porque não utilizar conceitos atuais para a execução hoje em dia, o purismo excessivo pode significar um grande empecilho para a realização de uma obra.
A linguagem musical é abstrata de forma que, falar sobre musicalidade é algo abstrato. No entanto, musicalidade é algo que vem da prática musical, que só consegue ser ensinado através da música. E a nosso ver, é o ponto que possui maior relevância numa boa interpretação.

Bibliografia

1. Consultada

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NEWTON, G. Sonority in Singing – an Historical Essay, Nova York, ed. Vantage, 1984.
SANFORD, Sally. Sevententh and Eighteenth Century Vocal Style and Technique, Stanford University, 1979.

2. Levantada

CARUSO, Enrico, e TETRAZZINI. The Art of Singing. Nova York, Dover, 1975.
BROWN, William Earl. Vocal Wisdom. Nova York, Arno Press, 1970.
BURNEY, Charles. Music, Men and Manners in France and Italy 1770. Londres, Eulenburg, 1974.
Site Consultado
http://rism.harvard.edu/jscm/v1/no1/sanford/html
2.2 “Journal of Sevententh-Century Music”