7.8.07

TEATRO, VOZ, DICÇÃO


TEATRO, VOZ E DICÇÃO

(Mônica Valle)

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"O texto do autor é uma transcrição física para o ator" Louis Jouvet


O conhecimento sobre teatro pode favorecer o fonoaudiólogo em sua atuação com profissionais desta área. Trabalhar a voz e a fala de atores ganha outro sentido, quando é maior a compreensão sobre aspectos essenciais do universo teatral, como os diferentes tipos de tratamento dado ao texto e à atuação do ator. Considerar o contexto histórico em que a obra foi escrita, saber sobre o autor, o estilo de linguagem utilizado e sobre quais os sentidos desejados pelo diretor da encenação teatral em que o ator atua, orientará o fonoaudiólogo na preparação vocal e dicção a serem feitas, favorecendo a que possam estar, ainda mais, em harmonia com a obra. Neste artigo um breve sobrevôo será apresentado sobre o teatro do ocidente, destacando algumas observações sobre voz e dicção.O principal objetivo é ampliar o interesse do fonoaudiólogo pela busca de informações em fontes bibliográficas teatrais, o que poderá contribuir para o diálogo entre as áreas fonoaudiológica e teatral, e, conseqüentemente para a abordagem vocal de atores.

“A Tragédia constitui para Aristóteles, uma espécie de apogeu para as manifestações artísticas do seu tempo. Isso porque a Tragédia é tomada como o resultado de um conglomerado de expressões artísticas, que envolve a música (a composição da melodia), a poesia (a elaboração do enredo e da métrica) e a cena teatral propriamente dita (abrangendo o trabalho dos atores e a produção dos cenários)". Pinheiro (2000, p.172)
Nada disso, no entanto, se constituiria enquanto espetáculo trágico se não fosse o trabalho primeiro do poeta trágico. Aristóteles considera a tarefa do poeta trágico, ou seja, a composição da história (mýthos), como a parte fundamental da Tragédia, o que ela é, digamos assim, em sua essência . A dramaturgia é pensada sobretudo a partir da idéia de ‘composição dos fatos’, a reunião das ações na forma específica de um enredo trágico.
Os homens do teatro clássico francês e seus sucessores da Comédie Française até o século XX, entendiam a “convenção teatral” como: versos, divisão em atos determinada pela ação dramática e assuntos selecionados de interesse da aristocracia, com personagens representando reis, princesas, cortes, enfim, poderosos. Isso é o que afirma Costa (1998, pp. 88-89) citando como alguns destes homens, o crítico e diretor Jacques Copeau e o ator e diretor Louis Jouvet. A autora segue dizendo que a interpretação dos atores era frontal, ou seja, mesmo nos diálogos, dirigiam-se ao público sem entreolharem-se. E continua:
Desenvolveram uma dicção dita teatral, caracterizada por aquilo que até hoje os fonoaudiólogos chamam ‘impostação da voz’, mas que tão somente era baseada na concepção e prática clássicas da eloqüência, exigindo voz forte, grave, pronúncia correta das palavras e dramaticidade de expressão, fala pausada (pausas longas a cada oração), capacidade de estabelecer oposições (com os recursos técnicos da modulação e do colorido), ênfase nas inflexões e domínio da mímica e do gesto e das expressões faciais, que deveriam funcionar como recursos adicionais, de realce do texto declamado.
Costa refere-se certamente a uma ‘impostação’ da voz, que se feita com exagero e mecanicamente, a faz parecer artificial e padronizada. Mas, não há dúvida que é essencial para o ator produzir e emitir bem a sua voz. E como afirmei em outro momento: “Ter uma emissão vocal plena é poder dar corpo à voz, fazê-la ressoar sem esforço e se projetar agradavelmente no espaço em que se fala” .
Roubine (1998, p.23) escreve que “convencionou-se considerar Antoine [fundador do Teatro Livre na França em 1887] como o primeiro encenador no sentido moderno atribuído à palavra”. Segundo o autor, em linhas gerais, o teatro moderno caracteriza-se por exigir uma autenticidade na representação contra os estereótipos; interrogar-se sobre o espaço da representação, inclusive com o uso da “quarta parede”; pela redescoberta da teatralidade ao contrário do ilusionismo tão presente no século XVIII; por questionar a relação do espectador com o espetáculo e principalmente pela existência de um encenador responsável pela criação do espetáculo como uma unidade estética e orgânica, onde a encenação aparece em primeiro lugar. Desde este período, algumas concepções teatrais questionam-se em relação a aspectos essenciais, como por exemplo, o tratamento dado ao texto.
Na Comédie Française, as intenções do criador do texto deviam ser fielmente levadas ao espectador. Roubine ressalta que até a década de 1950 o dramaturgo detinha o único sentido do texto, e, mesmo na encenação moderna não há amplo questionamento quanto a esta supremacia do texto como fonte e destino do espetáculo. No teatro contemporâneo, diretores como Grotowski mudam este tratamento não se preocupando com a fidelidade às intenções do autor, e os anos 1970 assistem a criação de dramatúrgia coletiva com a diretora Ariane Mnochkine, por exemplo.
O palco italiano, no entanto, surgido no início do século XVI, abandonado em diversas experimentações, continua com sua presença marcante até hoje nos teatros. Mas foi o trabalho de ator que mais se ampliou e desenvolveu, principalmente em relação ao corpo e à voz. Roubine (Op.cit., p. 205) diz que o ator é visto hoje como “um instrumento disponível para as exigências mais variadas capaz de fazer aparecer todas as formas de teatralidade”.
Costa (Op.cit.,pp.89-90) escreve que desde o período anterior à Revolução Francesa, os dramaturgos começaram a tratar de assuntos mais populares e deixaram de escrever em versos desenvolvendo o drama (chamado de drama burguês) em prosa propriamente dito. Nas palavras da autora: A geração responsável pela consolidação desse feito na França é conhecida como ‘realista’, e um de seus maiores representantes é Dumas Filho. (...) A interpretação supondo uma quarta parede invisível (porque os atores dialogam entre si podendo até mesmo voltar as costas ao público) foi introduzida antes mesmo de Antoine ter nascido. Pode-se dizer o mesmo do abandono da eloqüência em favor da fala cotidiana ou ‘natural’. Quando surgiu a geração de Antoine, havia no panorama teatral francês o repertório clássico e o realista.O teatro realista levava aos palcos problemas familiares, conflitos de gerações, adultérios, golpes financeiros... A ampliação deste repertório (já considerado de péssimo gosto pelos conservadores da tradição clássica) pelos naturalistas [Antoine, Stanislavski...] para os escritórios, as lavanderias, as cozinhas, as reivindicações políticas e os atos públicos, ultrapassa os limites do suportável para os conservadores. Quanto à dicção e hábitos lingüísticos populares trazidos ao palco, houve segundo Costa, uma fúria dos clássicos e até mesmo de realistas contra a escola naturalista e em especial ao Teatro Livre de Antoine.
Ainda segundo Iná Camargo Costa, na obra Ibsen, o filósofo Lukács (em Teoria do drama moderno) já identifica elementos que põem em crise a forma do “drama burguês”. Costa (Op. cit., p.14) ressalta:
O conceito de teatro moderno compreende o processo histórico desencadeado pela crise da forma do drama através da progressiva adoção de recursos próprios dos gêneros lírico e épico que culminou com o aparecimento de uma nova forma de dramaturgia – o teatro épico.Como já foi dito, este artigo não visa abordar os assuntos com profundidade, mas apenas sobrevoar sobre alguns aspectos e fatos marcantes do universo teatral, daí as poucas linhas sobre as importantes formas teatrais aqui referidas. Mas, vale ressaltar, que o principal representante do teatro épico é Bertolt Brecht. Gerd Bornheim (1992, p.138) cita Brecht quando em uma entrevista simplifica que “o essencial do teatro épico reside no apelo, não tanto aos sentimentos, mas à razão do espectador. Mas seria totalmente errôneo pretender expulsar desse teatro o sentimento”. O autor destaca que devido a suas características distintas em relação à forma dramática do teatro, a forma épica de teatro, exigiu nova técnica de atuação e direção, nova dramaturgia , diversas técnicas de palco, nova utilização da música, emprego de imagens de filmes nas encenações ... para fazer com que o ator e o público não se identificassem com as personagens e pudessem ver mais. Bornheim (Op. cit., p.218) traz as palavras de Brecht para abordar este efeito de distanciamento: “consiste em reproduzir sobre o palco os acontecimentos da vida real, de tal maneira que justamente a sua causalidade se manifeste e ocupe o espectador”.
O uso da voz neste teatro onde a técnica de atuação do ator privilegia a racionalidade, dirigindo-se diretamente ao espectador sem a quarta parede e utilizando diversos recursos para conseguir o distanciamento, será bastante diferente do utilizado no realismo e naturalismo. Para dar um exemplo: o ator atua representando o personagem e às vezes comenta (narra) suas ações numa mesma cena, inclusive através de canções (songs).No Brasil, Prado (1999, p.19) menciona Anchieta, que escrevia sermões dramatizados, e afirma que “o teatro brasileiro nasceu à sombra da religião católica”. Segundo o autor os primeiros textos brasileiros datam de 1705, mas, somente no século XVIII o teatro realmente começa lentamente a despontar em Salvador, deslocando-se para o Rio de Janeiro.
Quando a corte se instala no Rio são construídos cinco teatros, pondo fim às “Casas de Óperas” do final do século anterior. Companhias teatrais e atores portugueses vinham para o Brasil. Um ator brasileiro tem destaque: João Caetano. Daí para frente muitos nomes irão surgir no teatro, como atores e como escritores (dramaturgos). Um deles foi Martins Pena (1815-1848).Décio de Almeida Prado (Op. cit., p.77) escreve que o realismo significou para o escritor de teatro o fim dos sonhos das tentativas revolucionárias de 1848 e o retorno ao senso comum. Escreveu o autor que Alexandre Dumas Filho (em 1860) pensa no burguês. “O núcleo do drama realista é a família, simplifica-se o quadro ficcional: enredos verossímeis, personagens da vida diária, cenas sugerindo salas familiares, os atores não se dirigem mais ao público”. Um pouco mais adiante o autor (Op.cit., p.102) afirma: “Ao realismo, seguiria o naturalismo como na França, mas nos palcos do Rio de Janeiro essa seqüência foi interrompida por uma avalanche de música ligeira, (...) onde abaixo da opereta , situava-se a revista.”As afirmações de Prado em outra obra (1996, p.20) dão uma clara idéia sobre o triênio 1930-1932: “Entre as 174 peças nacionais apresentadas no Rio de Janeiro, apenas duas intitulavam-se drama, contra 69 revistas e 103 comédias”.
Veneziano (1991, p.12) diz que a primeira revista brasileira teve estréia em 1859. Em 1884 estreou O Mandarim de Arthur Azevedo (também autor da burleta O Mambembe considerada uma obra-prima) e Moreira Sampaio, introduzindo a caricatura pessoal.Pelas revistas de ano, passeavam personagens-tipo que encarnavam o perfil do carioca, às vezes malandro, às vezes cômico. Também imigrantes portugueses, ingênuos sertanejos pasmados diante do progresso, mulheres fatais, doutores e uma galeria sem fim de caricaturas vinham se juntar às alegorias, oferecendo um panorama tão ou mais fiel para a história do que a comédia de costumes.(...) Personagens caipiras também eram comuns.
Da autora (Op.cit.p.31), vale também destacar algumas afirmações importantes: “O ridículo era a matéria prima da revista. (...) Sua decadência veio nos anos 1960”. E ainda, quando Veneziano (Op. cit, p.29) cita Roberto Ruiz, ao dizer que nos palcos brasileiros [século XIX] falava-se à portuguesa: “Falavam à lusitana, João Caetano, Francisco Vasques, Procópio Ferreira, Leopoldo Fróes e Dulcina de Morais”.Sem dúvida, um dos marcos do teatro brasileiro foi a apresentação do grupo - Os Comediantes - da peça Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues, em 1943, encenada por Ziembinski. Mas, segundo Prado (Op. cit, p.43):A consolidação do que poderíamos chamar de novo profissionalismo veio em 1948, com a criação do Teatro Brasileiro de Comédias, que além de ter um caráter empresarial, tinha como repertório, clássicos universais - antigos ou modernos, alternando com peças de apelo popular. Nos seus 15 anos de existência o TBC deslocou a iniciativa teatral para São Paulo. (...) Como os teatros, em comparação com os amplos edifícios do começo do século, haviam encolhido, os atores desobrigados de projetar a voz à longa distancia, podiam dar-se ao luxo de desempenhos mais sóbrios. A dicção não caia naquele martelamento silábico não incomum na velha geração.
Décio de Almeida Prado (Op. cit., p. 47) destaca que neste momento: “Acima de tudo e de todos, conforme a lição de Stanislávski e de Copeau, brilhava, intangível o texto literário”.Costa (Op. cit, p.119) revela que a ensaísta e professora da Escola de Arte Dramática Gilda de Mello e Souza “demonstrou que A Moratória de Jorge de Andrade (em 1955) é a primeira obra-prima do teatro moderno brasileiro”. Este foi um fértil período de espetáculos, como: O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1956); Eles não usam Black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri (1958); Chapetuba futebol clube, de Oduvaldo Viana Filho (1959); O pagador de Promessas de Dias Gomes (1960) e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal (1960).Ao sair da Escola de Arte Dramática, em 1953, José Renato funda o Teatro de Arena, que de acordo com Prado (Op. cit., p.78). “nos seus dez anos mais produtivos (1958 a 1968) funcionou como ponta de lança do teatro político brasileiro”.O autor (Op. cit., p. 99) refere-se também à criação do CPC - “Em fins de 1961 foi fundado o Centro Popular de Cultura no Rio de Janeiro, que contrapôs-se ao Teatro de Arena de São Paulo de quem era filho rebelde, por submeter totalmente a arte à política.”Brandão (2001, p. 327) escreveu que por volta de 1954, a companhia teatral Teatro dos Sete “trazia de volta à memória as lições de Copeau a respeito da necessidade do ator ser comediante e apagar a sua identidade pessoal em função do teatro.”Prado (Op. cit., p.103) não esqueceu de referir-se ainda ao dramaturgo Plínio Marcos que “em 1967, surpreende a todos com o sucesso nacional de Dois Perdidos Numa Noite Suja e Navalha na Carne”. Vale chamar a atenção para o fato de que tanto o teatro de Arena, como o Teatro Oficina (também em São Paulo) desapareceram em 1972. Muitos outros autores, encenadores (diretores), companhias, teatros e atores são destacados por Décio de Almeida Prado, inclusive Abujamra e Maria Clara Machado - fundadora (1951) e diretora do Tablado (no Rio de Janeiro), que exigia peças de qualidade para as crianças.
Em outra obra já mencionada escrevi: Para corrigir e aperfeiçoar a voz e a fala de uma pessoa o fonoaudiólogo, além de utilizar seus conhecimentos, necessita, considerar as particularidades e objetivos de cada sujeito. Da atuação fonoaudiológica faz parte informar, favorecer e ampliar a percepção e utilização dos processos que integram o dizer, tornando possível que o sujeito possa dispor dele com consciência e arte. (Op. cit, p. 5). No trabalho com atores, além de tratar e prevenir disfonias, inclusive valorizando o aquecimento e desaquecimento da voz, o fonoaudiólogo pode fazer a preparação vocal de um espetáculo, inserindo-se em um amplo contexto artístico e técnico. Deve considerar as falas e as vozes de cada personagem e a harmonia entre elas requerida pela obra. Não é um trabalho fácil, requer interesse pela arte, capacidade de comunicação com o diretor, com os atores e demais técnicos e artistas que integram o espetáculo. É uma nova construção a ser realizada a cada obra. Peter Brook (2002, p. 28), um dos maiores diretores de teatro da atualidade, abordando a arte de representar a aponta como uma difícil e fugidia meta: mantermo-nos em contato com nosso conteúdo interior e ao mesmo tempo falarmos em voz alta. Como se consegue fazer com que essa expressão íntima cresça até preencher um amplo espaço, sem traição? Como se eleva o tom da voz sem distorcer a relação? É extremamente difícil: eis aí o paradoxo da interpretação. O autor (Op. cit., p.68) ao prosseguir em sua obra afirma: São as mudanças na voz, as alterações imprevistas de tom, crescendo, fortíssimo, pianíssimo, as pausas, o silêncio, em suma, a música vocal concreta que traz consigo a dimensão humana, deixando-nos ansiosos por ouvir, e essa dimensão humana é justamente o que nós e nossos computadores ainda não conseguimos compreender de um modo preciso e científico. É sentimento que conduz à paixão, paixão que transmite convicção , convicção que é o único instrumento espiritual capaz de fazer os homens se preocuparem uns com os outros .
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